Além da parte médica podemos também analisar de forma construtiva o porquê dos acidentes e o que poderia ter sido feito em termos de proteção (ambos caíram guiando em móvel) para minimizar as conseqüencias de uma queda (ambos sofreram fraturas graves).
O PRIMEIRO RESGATE
Nosso amigo espanhol (chamado Jesus) tinha passado pelo Rio de Janeiro em
setembro, tendo escalado conosco e guiado vias na Urca como a Pássaros
de Fogo (6b). Seu bom nível de escalada é indiscutível,
com várias ascensões perto de Madri, onde mora. Ele seguiu viajando
pela América do Sul e encontrou conosco de novo em janeiro, no Frey.
Depois disto o plano seria seguir viajando mais para o Sul. Um queda não
muito grande interrompeu seus planos de escalada, não só nas
férias mas como pelos próximos meses. A via “carrasca”
foi uma clássica do Frey, chamada Del Diedro (5 sup no guia local).
Um lindo diedro de 25 metros na Torre M2, muitos brasileiros a conhecem. Via
carrasca? Bem sabemos que 90% dos acidentes são de causa subjetiva,
ou seja, provocados (ou evitáveis) pelo escalador. Só 10% tem
causa objetiva, como pedras que caem, avalanches ou falha no equipamento.
Jesus estava numa torre muito próxima ao acampamento, com bastante
luz do dia ainda. Saiu guiando, protegeu com alguns camalots e entrou na parte
mais de pé do diedro. Continuou subindo e se deparou com o tetinho
que é considerado o crux, a saída do diedro. Segundo ele começou
a ficar cansado, a “tijolar” e começou a ficar na dúvida
se protegia ou seguia para cima. O último camalot estava dois metros
abaixo dele. Ainda segundo ele hesitou demais, perdeu tempo, tijolou mais
ainda e acabou decidindo tocar para cima. A queda de 4 metros que ele sofreu
ao prosseguir sem proteger poderia não ter maiores conseqüencias
se não fosse pelo pequeno platô que estava abaixo dele. O calcanhar
direito sofreu todo o impacto e depois disso ele ficou de cabeça para
baixo. As costas e cabeça se chocaram contra a parede neste momento
e a corda esticou. A maior parte do impacto foi absorvida pelo calcanhar,
o capacete e a mochila ajudaram a proteger as costas e a cabeça.
Seu parceiro relata que viu Jesus (ok, todos já fizemos nossos trocadilhos,
podem fazer os seus) de cabeça para baixo e gritando. Ele o desceu
até o solo (por sorte havia corda para isso), o socorreu e gritou para
que outras cordadas próximas viessem ajudar. Não havia material
para imobilização, alguns analgésicos foram dados por
um guia local e providenciaram a descida carregando o Jesus nas costas. Em
alguns poucos trechos ele ia saltitando, porém sem nunca apoiar o pé
(sinal de torsão ou fratura grave). Não havia rádio para
chamar ajuda. Segundo ele foi um verdadeiro calvário, pois o terreno
acidentado o obrigava a usar o pé saudável ou a descer sentado
nas partes piores. A descida de 20 minutos até a barraca acabou demorando
quase duas horas. Já no acampamento o refugiero foi contactado, pudemos
imergir o pé em água fria e reforçamos a medicação
com analgéscios e anti-inflamatórios. A noite foi muito ruim
para ele, com o tornozelo muito inchado, roxo e dolorido. O refugiero nos
comunicou que uma equipe de paramédicos do Parque Nacional iria subir
para ajudar o Jesus na descida, e que esta seria feita por mula ou por helicóptero.
Na manhã seguinte fomos acordados bem cedo pelos Guarda-Parques, acompanhados
pelo paramédico Luciano. Ele nos orientou a desmontar a barraca e fazer
a mochila do Jesus. Para a nossa surpresa começamos a ouvir o barulho
do helicóptero. Nada de mulas, seria muito doloroso cavalgar com o
pé naquele estado (ele nem poderia usar o estribo) por isso tinham
preferido o resgate aéreo. Igualzinho ao Brasil! Havia uma maca de
madeira no refúgio, porém o piloto nos trouxe uma mais leve,
de plástico. Colocamos nosso amigo nela, bem fixado com cintas de nylon
e o carregamos até o helicóptero, pousado no fundo do vale.
Esta simples caminhada, no plano, nos tomous uns 25 minutos, mesmo com 8 montanhistas
carregando a maca. Esta é uma das primeiras lições: todos
os tempos de caminhada são multiplicados por 5 quando se carrega alguém
ferido. Com votos de melhoras e uma tristeza no coração por
ver o amigo machucado nos despedimos dele. O helicóptero decolou e
se afastou até sumir no horizonte. Lamentávamos pelo acidente
e pela viagem interrompida do nosso amigo. Especulávamos que talvez
fosse só um entorse e que em breve ele poderia continuar a viagem até
Chaltén. Tudo bem que não sou ortopedista, mas foi muita ingenuidade
ou otimismo para tentar encorajar a mim mesmo e aos outros. Todas as esperanças
foram desfeitas quando dias depois alguém desceu para Bariloche e trouxe
a notícia de que Jesus já estava na Espanha, operado e com várias
parafusos na perna: fratura grave de tíbia.
A REFLEXÃO
Este tipo de acidente pode acontecer com qualquer um, em qualquer lugar. A
gravidade dos acidentes de escalada varia muito, obviamente, mas pudemos perceber
que esta não é o único fator determinante para a saúde
do escalador. A qualidade e a velocidade do socorro prestado são fundamentais
para garantir uma rápida recuperação e minimizar as lesões
sofridas. O que seria do escalador Barão se não fosse o helicóptero
que o levou do Garrafão ao Rio em poucos minutos? Mas além destes
fatores que muitas vezes escapam ao contrôle de nós, escaladores
e montanhistas, o que podemos fazer para salvar um amigo?
O QUE FAZER?
O primeiro é: evite o acidente. O segundo é: evite o acidente.
Lembre-se, 90% dos acidentes são causados pelo próprio escalador.
Ok, e se o acidente já aconteceu? Se este já aconteceu, três
itens importantes: avise mais pessoas, chegue rápido (se isto não
for colocar você em risco), e não faça nada que não
saiba fazer com a vítima (não piore se não tiver certeza
que vai melhorar). O ideal, é claro, é fazer um curso de Primeiros-Socorros!
Informe-se, forme-se, a escalada é um esporte tão prazeroso,
que faremos por muitos anos e que presume um certo afastamento da cidade,
longe das ambulâncias e do telefone 192. Sua atitude pode minimizar
o sofrimento de alguém e até salvar a vida do seu companheiro.
O SEGUNDO RESGATE
Voltando ao assunto de resgates no Frey, qual não foi nossa surpresa
quando dias depois nossa amiga Patrícia chegou correndo na nossa barraca,
sem mochila e principalmente sem o parceiro de escalada dela naquele dia,
o Martin. Como cachorro que já tomou tijolada não dorme perto
de olaria, logo vimos que algo tinha acontecido. Ela gritou: “o Martin
caiu, o Martin caiu! “. Arregalamos o olho por meio segundo sem saber
que tamanho de queda tinha sido (até o chão?) até que
ela completou: “ele caiu na Piramidal, eu o desci até o chão,
conversei com ele e desci para chamar ajuda, pois parece que ele quebrou a
bacia”. Ela nos disse que o acidente tinha sido igual ao do Jesus (!),
uma queda de 4 metros com impacto num platô abaixo e que ele estava
mal. Conhecemos a Patrícia há muito tempo, sabíamos que
ela tinha muita experiência de montanha e agradecemos as valiosas informações
que ela nos passou nestas curtas frases. Para fins de didática, abandono
aqui a narração dos fatos e passo para uma enumeração
e análise sucinta. Fica evidente que mesmo um acidente numa torre próxima
demanda uma certa logística e que o resgate é demorado mesmo
sem condições adversas.
1-
15:00h: Martin entra na via “Mastropiero nunca más” e cái
sobre uma peça móvel(que não se soltou), impacto forte
com as costas e a bacia num platô. Por sorte era antes do meio da primeira
cordada, então Patrícia o desce até o chão sem
muitos problemas. Ela conversa com ele e tenta ajudar e analisar que tipo
de lesão ele teve. Lições: o segundo sempre deve estar
encordado, o segundo deve estar atento e não deixar barriga de corda,
proteja sua ascensão em caso de platô embaixo, analise a situação
pós-acidente, mantenha a calma e converse com a vítima, veja
se há riscos de deixá-la onde está, só saia de
perto se necessário, deixe objetos importantes com ela (casaco, água),
junte o máximo o máximo de informações importantes
para o resgate.
2-
15:30h: Patrícia chega até nossa barraca e passa as informações.
Peço que ela vá até o refúgio e informe o ocorrido.
Importante providenciar: maca de transporte, medicação do refúgio,
comunicação com centro hospitalar, solicitação
de helicóptero (fratura de bacia é muito grave) e mais dez pessoas
para se revezar no carregamento da maca. Eu e Cadu juntamos água, cobertor
de emergência, casaco, lanterna, fita adesiva e armações
da mochila (para imobilização de fraturas) e subimos o terreno
acidentado para a Torre Piramidal. No meio do caminho vemos que já
há outros montanhistas subindo até a vítima, pessoas
que a Patrícia já tinha encontrado.
3-
16h: cruzamos um neveiro bem inclinado e pedimos ao nosso amigo chileno, o
Cláudio, para instalar um corrimão naquela travessia delicada,
já pensando na volta. Logo depois chegamos até o Martin, deitado
no chão, coberto com casacos. Um rápido exame da área
nos diz que não há riscos de pedras caírem ou deslizarem
sobre os resgatistas. Perguntado para o Martin (como caiu, onde bateu, onde
dói) e palpando percebe-se uma provável fratura de bacia. Um
dos refugieros traz o colar cervical, logo colocado, e a maca, onde instalamos
nosso amigo após imobilizar a articulação da perna com
o quadril. Depois o cobrimos com a manta térmica, e o fechamos com
a lona da maca. Por fim o imobilzamos com as cintas de nylon para evitar que
ele escorregasse durante a descida.
4-
16:30h: adaptamos fitas de escalada na maca, facilitando o controle desta
em terreno acidentado. Oito pessoas a seguram, os mais altos a frente (estávamos
descendo) e o refugeiro indicando o melhor caminho (velocidade X mobilização
excessiva do acidentado). Ao chegar no neveiro inclinado ensolteiramos a maca
ao corrimão feito de corda e passamos todos a montante da corda para
evitar que um dos resgatistas escorregasse montanha abaixo. Ao todo havia
umas 15 pessoas ajudando, carregando mochilas,preparando corrimãos,
vendo o caminho e revezando no transporte da maca. Não é nada
fácil descer os 80 kg de uma pessoa montanha abaixo, tentando não
sacolejar muito, evitando trechos escorregadios e não desequilibrando
os outros.
5-
17:00h: um helicóptero chega e pousa no fundo do vale do Frey. Uma
equipe de Guarda-Parques começa a subir na nossa direção.
Os oito carregadore da maca vão se revezando, e mais um montanhista
amarra uma longa fita na parte de trás para servir de freio nas descidas
mais íngremes. Perguntamos frequentemente ao Martin como ele está,
com medo que ele apagasse.
6- 17:30h: reencontramos Luciano,
nosso amigo paramédico que já tinha subido no primeiro resgate.
Ele examina o Martin e mede a pressão (não tínhamos aparelho
de pressão antes). Ela está muito baixa e o Martin muito pálido.
Com estes primeiros sinais de choque abrimos uma grande mochila-farmácia
que eles tinham trazido no helicóptero, e usamos as medicações
necessárias para o caso. O Martin melhora depois de 30 minutos e reiniciamos
a caminhada.
7- 19h: chegamos ao heliponto
improvisado no gramado, uma camiseta amarrada num bastão de caminhada
sinalizava o vento para o piloto. Reexaminamos o Martin, administramos alguns
remédios antes da decolagem e nos despedimos dele, inclusive combinando
de desmontar a barraca e mandar as coisas dele para Bariloche. O helicóptero
decola pouco depois das 19h.
O Cerro Piramidal não é muito longe do acampamento, 30- 40 minutos
de caminhada, porém podemos perceber que este tempo é multiplicado
ao transportar um acidentado. Se tudo isto tivesse ocorrido numa torre mais
longe, como o Campanille, a noite com certeza nos pegaria na montanha. Uma
pessoa com perda de sangue (pela fratura) deve ser mantida aquecida, e uma
noite fria na montanha seria um risco não só para ela como para
a equipe de resgate. Nestes casos temos que subir preparados para caminhar
de noite (só se for seguro) ou para passar a noite na montanha, cuidando
da vítima (saco de dormir, fogareiro e comida). É claro que
isto só é possível se soubermos de antemão qual
a gravidade do acidente e se a vítima pode ou não passar a noite
na montanha. O restante da equipe pode subir bem cedo para completar o resgate.
COLABORAR
Fica claro também que TODOS podem ajudar numa situação
dessas. Aqueles que sabem Primeiros Socorros devem atender a vítima,
mas há vária outras tarefas, como carregar a maca, preparar
a descida, descer para chamar mais ajuda ou para coisas não menos importantes
mas que são esquecidas como improvisar uma biruta para o helicóptero,
preparar a mochila do acidentado, ou avisar parentes.
A LIÇÃO
Outra lição importante é perceber o quanto estamos despreparados
aqui no Brasil para uma situação destas. Tudo funcionou bem,
quase no automático, e pessoas que não se conheciam, que vinham
inclusive de países diferentes, se puseram em sintonia para ajudar
outro montanhistas. Não havia ninguém para coordenar, mas todos
se entenderam. Não havia ninguém para chefiar, mas todos seguiram
suas consciências e fizeram o melhor de si. A parte do governo argentino
também foi feita, fornecendo rapidamente equipes e helicópteros
em situações graves, sem nenhum custo (ao contrário de
outros países).
SOLIDARIEDADE NA MONTANHA
Porém a parte mais importante não foi feita pelo governo, e
sim pelos montanhistas. Socorreram e transportaram o acidentado rapidamente
e com qualidade, dentro dos seus conhecimentos. Não houvesse helicóptero,
teríamos usado as mulas se possível. Teríamos descido
a trilha toda com a maca até a cidade fosse isso necessário.
Equipamento importa, mas bem menos que boa vontade, coordenação
e o espírito do montanhismo. Martin e Jesus, estamos esperando vocês
na próxima temporada!
PS: Jesus foi operado e está bem, Martin não precisou de cirurgia
mas terá que ficar três meses deitado até a fratura de
bacia se consolidar.
Alexandre Charão,
Escalador e Montanhista
Médico Cirurgião, Voluntário do MSF(Médico sem
Fronteiras)
Contato: contato@brasilvertical.com.br
Links úteis:
http://www.mountainmedicine.org
http://www.ismmed.org/
http://www.mountain.rescue.org.uk/
http://www.mra.org/
http://www.t-rescue.com/reviews/bookrev/index.pdf
http://www.rockymountainrescue.org/index.php
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