Uma noção básica de Primeiros Socorros é fundamental para qualquer escalador,
ainda mais para aquele que se dispõe a escalar em regiões mais afastadas como Salinas, Serra dos Orgãos, Arenales, Chaltén. Estive no Frey com meu amigo Cadu e pudemos participar de dois resgates de alpinistas durante os 30 dias da nossa estadia.
Acho importante este tipo de relato, pois pode nos ajudar a prevenir um acidente
de escalada com nós mesmos ou com parceiros de cordada e serve também para informar
e divulgar alguns princípios básicos de resgate. Como médico acabei participando
destes dois graves eventos e pude analisar os pontos negativos e positivos
tanto no resgate do escalador espanhol quanto do nosso amigo argentino.

Além da parte médica podemos também analisar de forma construtiva o porquê dos acidentes e o que poderia ter sido feito em termos de proteção (ambos caíram guiando em móvel) para minimizar as conseqüencias de uma queda (ambos sofreram fraturas graves).

O PRIMEIRO RESGATE

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Nosso amigo espanhol (chamado Jesus) tinha passado pelo Rio de Janeiro em setembro, tendo escalado conosco e guiado vias na Urca como a Pássaros de Fogo (6b). Seu bom nível de escalada é indiscutível, com várias ascensões perto de Madri, onde mora. Ele seguiu viajando pela América do Sul e encontrou conosco de novo em janeiro, no Frey. Depois disto o plano seria seguir viajando mais para o Sul. Um queda não muito grande interrompeu seus planos de escalada, não só nas férias mas como pelos próximos meses. A via “carrasca” foi uma clássica do Frey, chamada Del Diedro (5 sup no guia local). Um lindo diedro de 25 metros na Torre M2, muitos brasileiros a conhecem. Via carrasca? Bem sabemos que 90% dos acidentes são de causa subjetiva, ou seja, provocados (ou evitáveis) pelo escalador. Só 10% tem causa objetiva, como pedras que caem, avalanches ou falha no equipamento.
Jesus estava numa torre muito próxima ao acampamento, com bastante luz do dia ainda. Saiu guiando, protegeu com alguns camalots e entrou na parte mais de pé do diedro. Continuou subindo e se deparou com o tetinho que é considerado o crux, a saída do diedro. Segundo ele começou a ficar cansado, a “tijolar” e começou a ficar na dúvida se protegia ou seguia para cima. O último camalot estava dois metros abaixo dele. Ainda segundo ele hesitou demais, perdeu tempo, tijolou mais ainda e acabou decidindo tocar para cima. A queda de 4 metros que ele sofreu ao prosseguir sem proteger poderia não ter maiores conseqüencias se não fosse pelo pequeno platô que estava abaixo dele. O calcanhar direito sofreu todo o impacto e depois disso ele ficou de cabeça para baixo. As costas e cabeça se chocaram contra a parede neste momento e a corda esticou. A maior parte do impacto foi absorvida pelo calcanhar, o capacete e a mochila ajudaram a proteger as costas e a cabeça.
Seu parceiro relata que viu Jesus (ok, todos já fizemos nossos trocadilhos, podem fazer os seus) de cabeça para baixo e gritando. Ele o desceu até o solo (por sorte havia corda para isso), o socorreu e gritou para que outras cordadas próximas viessem ajudar. Não havia material para imobilização, alguns analgésicos foram dados por um guia local e providenciaram a descida carregando o Jesus nas costas. Em alguns poucos trechos ele ia saltitando, porém sem nunca apoiar o pé (sinal de torsão ou fratura grave). Não havia rádio para chamar ajuda. Segundo ele foi um verdadeiro calvário, pois o terreno acidentado o obrigava a usar o pé saudável ou a descer sentado nas partes piores. A descida de 20 minutos até a barraca acabou demorando quase duas horas. Já no acampamento o refugiero foi contactado, pudemos imergir o pé em água fria e reforçamos a medicação com analgéscios e anti-inflamatórios. A noite foi muito ruim para ele, com o tornozelo muito inchado, roxo e dolorido. O refugiero nos comunicou que uma equipe de paramédicos do Parque Nacional iria subir para ajudar o Jesus na descida, e que esta seria feita por mula ou por helicóptero.
Na manhã seguinte fomos acordados bem cedo pelos Guarda-Parques, acompanhados pelo paramédico Luciano. Ele nos orientou a desmontar a barraca e fazer a mochila do Jesus. Para a nossa surpresa começamos a ouvir o barulho do helicóptero. Nada de mulas, seria muito doloroso cavalgar com o pé naquele estado (ele nem poderia usar o estribo) por isso tinham preferido o resgate aéreo. Igualzinho ao Brasil! Havia uma maca de madeira no refúgio, porém o piloto nos trouxe uma mais leve, de plástico. Colocamos nosso amigo nela, bem fixado com cintas de nylon e o carregamos até o helicóptero, pousado no fundo do vale. Esta simples caminhada, no plano, nos tomous uns 25 minutos, mesmo com 8 montanhistas carregando a maca. Esta é uma das primeiras lições: todos os tempos de caminhada são multiplicados por 5 quando se carrega alguém ferido. Com votos de melhoras e uma tristeza no coração por ver o amigo machucado nos despedimos dele. O helicóptero decolou e se afastou até sumir no horizonte. Lamentávamos pelo acidente e pela viagem interrompida do nosso amigo. Especulávamos que talvez fosse só um entorse e que em breve ele poderia continuar a viagem até Chaltén. Tudo bem que não sou ortopedista, mas foi muita ingenuidade ou otimismo para tentar encorajar a mim mesmo e aos outros. Todas as esperanças foram desfeitas quando dias depois alguém desceu para Bariloche e trouxe a notícia de que Jesus já estava na Espanha, operado e com várias parafusos na perna: fratura grave de tíbia.

A REFLEXÃO

Este tipo de acidente pode acontecer com qualquer um, em qualquer lugar. A gravidade dos acidentes de escalada varia muito, obviamente, mas pudemos perceber que esta não é o único fator determinante para a saúde do escalador. A qualidade e a velocidade do socorro prestado são fundamentais para garantir uma rápida recuperação e minimizar as lesões sofridas. O que seria do escalador Barão se não fosse o helicóptero que o levou do Garrafão ao Rio em poucos minutos? Mas além destes fatores que muitas vezes escapam ao contrôle de nós, escaladores e montanhistas, o que podemos fazer para salvar um amigo?

O QUE FAZER?

O primeiro é: evite o acidente. O segundo é: evite o acidente. Lembre-se, 90% dos acidentes são causados pelo próprio escalador. Ok, e se o acidente já aconteceu? Se este já aconteceu, três itens importantes: avise mais pessoas, chegue rápido (se isto não for colocar você em risco), e não faça nada que não saiba fazer com a vítima (não piore se não tiver certeza que vai melhorar). O ideal, é claro, é fazer um curso de Primeiros-Socorros! Informe-se, forme-se, a escalada é um esporte tão prazeroso, que faremos por muitos anos e que presume um certo afastamento da cidade, longe das ambulâncias e do telefone 192. Sua atitude pode minimizar o sofrimento de alguém e até salvar a vida do seu companheiro.

O SEGUNDO RESGATE

Voltando ao assunto de resgates no Frey, qual não foi nossa surpresa quando dias depois nossa amiga Patrícia chegou correndo na nossa barraca, sem mochila e principalmente sem o parceiro de escalada dela naquele dia, o Martin. Como cachorro que já tomou tijolada não dorme perto de olaria, logo vimos que algo tinha acontecido. Ela gritou: “o Martin caiu, o Martin caiu! “. Arregalamos o olho por meio segundo sem saber que tamanho de queda tinha sido (até o chão?) até que ela completou: “ele caiu na Piramidal, eu o desci até o chão, conversei com ele e desci para chamar ajuda, pois parece que ele quebrou a bacia”. Ela nos disse que o acidente tinha sido igual ao do Jesus (!), uma queda de 4 metros com impacto num platô abaixo e que ele estava mal. Conhecemos a Patrícia há muito tempo, sabíamos que ela tinha muita experiência de montanha e agradecemos as valiosas informações que ela nos passou nestas curtas frases. Para fins de didática, abandono aqui a narração dos fatos e passo para uma enumeração e análise sucinta. Fica evidente que mesmo um acidente numa torre próxima demanda uma certa logística e que o resgate é demorado mesmo sem condições adversas.

1- 15:00h: Martin entra na via “Mastropiero nunca más” e cái sobre uma peça móvel(que não se soltou), impacto forte com as costas e a bacia num platô. Por sorte era antes do meio da primeira cordada, então Patrícia o desce até o chão sem muitos problemas. Ela conversa com ele e tenta ajudar e analisar que tipo de lesão ele teve. Lições: o segundo sempre deve estar encordado, o segundo deve estar atento e não deixar barriga de corda, proteja sua ascensão em caso de platô embaixo, analise a situação pós-acidente, mantenha a calma e converse com a vítima, veja se há riscos de deixá-la onde está, só saia de perto se necessário, deixe objetos importantes com ela (casaco, água), junte o máximo o máximo de informações importantes para o resgate.

2- 15:30h: Patrícia chega até nossa barraca e passa as informações. Peço que ela vá até o refúgio e informe o ocorrido. Importante providenciar: maca de transporte, medicação do refúgio, comunicação com centro hospitalar, solicitação de helicóptero (fratura de bacia é muito grave) e mais dez pessoas para se revezar no carregamento da maca. Eu e Cadu juntamos água, cobertor de emergência, casaco, lanterna, fita adesiva e armações da mochila (para imobilização de fraturas) e subimos o terreno acidentado para a Torre Piramidal. No meio do caminho vemos que já há outros montanhistas subindo até a vítima, pessoas que a Patrícia já tinha encontrado.

3- 16h: cruzamos um neveiro bem inclinado e pedimos ao nosso amigo chileno, o Cláudio, para instalar um corrimão naquela travessia delicada, já pensando na volta. Logo depois chegamos até o Martin, deitado no chão, coberto com casacos. Um rápido exame da área nos diz que não há riscos de pedras caírem ou deslizarem sobre os resgatistas. Perguntado para o Martin (como caiu, onde bateu, onde dói) e palpando percebe-se uma provável fratura de bacia. Um dos refugieros traz o colar cervical, logo colocado, e a maca, onde instalamos nosso amigo após imobilizar a articulação da perna com o quadril. Depois o cobrimos com a manta térmica, e o fechamos com a lona da maca. Por fim o imobilzamos com as cintas de nylon para evitar que ele escorregasse durante a descida.

4- 16:30h: adaptamos fitas de escalada na maca, facilitando o controle desta em terreno acidentado. Oito pessoas a seguram, os mais altos a frente (estávamos descendo) e o refugeiro indicando o melhor caminho (velocidade X mobilização excessiva do acidentado). Ao chegar no neveiro inclinado ensolteiramos a maca ao corrimão feito de corda e passamos todos a montante da corda para evitar que um dos resgatistas escorregasse montanha abaixo. Ao todo havia umas 15 pessoas ajudando, carregando mochilas,preparando corrimãos, vendo o caminho e revezando no transporte da maca. Não é nada fácil descer os 80 kg de uma pessoa montanha abaixo, tentando não sacolejar muito, evitando trechos escorregadios e não desequilibrando os outros.

5- 17:00h: um helicóptero chega e pousa no fundo do vale do Frey. Uma equipe de Guarda-Parques começa a subir na nossa direção. Os oito carregadore da maca vão se revezando, e mais um montanhista amarra uma longa fita na parte de trás para servir de freio nas descidas mais íngremes. Perguntamos frequentemente ao Martin como ele está, com medo que ele apagasse.

6- 17:30h: reencontramos Luciano, nosso amigo paramédico que já tinha subido no primeiro resgate. Ele examina o Martin e mede a pressão (não tínhamos aparelho de pressão antes). Ela está muito baixa e o Martin muito pálido. Com estes primeiros sinais de choque abrimos uma grande mochila-farmácia que eles tinham trazido no helicóptero, e usamos as medicações necessárias para o caso. O Martin melhora depois de 30 minutos e reiniciamos a caminhada.

7- 19h: chegamos ao heliponto improvisado no gramado, uma camiseta amarrada num bastão de caminhada sinalizava o vento para o piloto. Reexaminamos o Martin, administramos alguns remédios antes da decolagem e nos despedimos dele, inclusive combinando de desmontar a barraca e mandar as coisas dele para Bariloche. O helicóptero decola pouco depois das 19h.

O Cerro Piramidal não é muito longe do acampamento, 30- 40 minutos de caminhada, porém podemos perceber que este tempo é multiplicado ao transportar um acidentado. Se tudo isto tivesse ocorrido numa torre mais longe, como o Campanille, a noite com certeza nos pegaria na montanha. Uma pessoa com perda de sangue (pela fratura) deve ser mantida aquecida, e uma noite fria na montanha seria um risco não só para ela como para a equipe de resgate. Nestes casos temos que subir preparados para caminhar de noite (só se for seguro) ou para passar a noite na montanha, cuidando da vítima (saco de dormir, fogareiro e comida). É claro que isto só é possível se soubermos de antemão qual a gravidade do acidente e se a vítima pode ou não passar a noite na montanha. O restante da equipe pode subir bem cedo para completar o resgate.

COLABORAR

Fica claro também que TODOS podem ajudar numa situação dessas. Aqueles que sabem Primeiros Socorros devem atender a vítima, mas há vária outras tarefas, como carregar a maca, preparar a descida, descer para chamar mais ajuda ou para coisas não menos importantes mas que são esquecidas como improvisar uma biruta para o helicóptero, preparar a mochila do acidentado, ou avisar parentes.

A LIÇÃO

Outra lição importante é perceber o quanto estamos despreparados aqui no Brasil para uma situação destas. Tudo funcionou bem, quase no automático, e pessoas que não se conheciam, que vinham inclusive de países diferentes, se puseram em sintonia para ajudar outro montanhistas. Não havia ninguém para coordenar, mas todos se entenderam. Não havia ninguém para chefiar, mas todos seguiram suas consciências e fizeram o melhor de si. A parte do governo argentino também foi feita, fornecendo rapidamente equipes e helicópteros em situações graves, sem nenhum custo (ao contrário de outros países).

SOLIDARIEDADE NA MONTANHA

Porém a parte mais importante não foi feita pelo governo, e sim pelos montanhistas. Socorreram e transportaram o acidentado rapidamente e com qualidade, dentro dos seus conhecimentos. Não houvesse helicóptero, teríamos usado as mulas se possível. Teríamos descido a trilha toda com a maca até a cidade fosse isso necessário. Equipamento importa, mas bem menos que boa vontade, coordenação e o espírito do montanhismo. Martin e Jesus, estamos esperando vocês na próxima temporada!
PS: Jesus foi operado e está bem, Martin não precisou de cirurgia mas terá que ficar três meses deitado até a fratura de bacia se consolidar.
Alexandre Charão,
Escalador e Montanhista
Médico Cirurgião, Voluntário do MSF(Médico sem Fronteiras)
Contato: contato@brasilvertical.com.br

Links úteis:
http://www.mountainmedicine.org
http://www.ismmed.org/
http://www.mountain.rescue.org.uk/
http://www.mra.org/
http://www.t-rescue.com/reviews/bookrev/index.pdf
http://www.rockymountainrescue.org/index.php

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ESCALADAS E RESGATES NO FREY EM FEVEREIRO 2008
Por Alexandre Charão