UMA PERSPECTIVA DIFERENTE

Há alguns meses recebi uma solicitação para escrever um artigo sobre o universo outdoor no Canadá em comparação com o Brasil pelo pessoal da BrasilVertical e devo dizer que senti-me honrada com o pedido e concordei imediatamente em expressar o meu ponto de vista sobre os dois universos.

Atualmente moro no Canadá e acabei de concluir um curso de formação de guias para o turismo de aventura de 2 anos de duração, durante o qual tive oportunidade de conhecer bem a ‘Indústria do Turismo de Aventura’ canadense e diversos profissionais da área, além de trabalhar como guia de caique oceânico em Vancouver Island durante o verão em 2006 e 2007. No Brasil, estive razoavelmente envovida com os chamados esportes de aventura, também participando e trabalhando voluntariamente com os trabalhos da FEMESP (Federação de Montanhismo no Estado de São Paulo) em projetos como o ‘Campeonato Paulista de Escalada Indoor’ e o ‘Adote uma Montanha’.

É interessante comparar o desenvolvimento do turismo de aventura no Brasil com o desenvolvimento do turismo de aventura no Canadá. Apesar de o nosso primeiro clube de montanhismo (CEB – Centro Excursionista Brasileiro, 1919) ter sido fundado apenas 13 anos após o primeiro clube de montanha canadense (Alpine Club of Canada, 1906) a maneira como o montanhismo se desenvolveu nos dois países é completamente diferente. Enquanto no Brasil em 1879 a ascensão do pico mais alto da Serra do Marumbi marcava o início do montanhismo no Brasil no Canadá o montanhismo já estava bem desenvolvido e 1897 marca o início do montanhismo guiado no Canadá. Quando o primeiro clube de montanhismo canadense foi criado guias profissionais (inicialmente guias suíços, importados) já guiavam ascensões aos principais picos das Montanhas Rochosas e o motivo pelo qual o primeiro clube de montanha canadense só foi criado em 1906 foi a falta de interesse dos montanhistas canadenses em se organizar.

Atualmente, contudo, os canadenses são bastante organizados no que se refere ao montanhismo e atividades outdoor, mas certos fatores contribuem para a grande disparidade entre Brasil e Canadá. A nossa geografia nos desprivilegiou de montanhas elevadas e picos acima dos 3.000m mas nos beneficiou com praias e comparativamente a indústria do surf no Brasil é bastante desenvolvida. Enquanto no Brasil ir à praia nos fins de semana e feriados e jogar futebol é o habitual, no Canadá, país extremamente abundante em lagos e montanhas, a tradição é ir passear de canoa e acampar no verão e esquiar com a família no inverno. Desta maneira, as crianças são introduzidas às atividades ligadas à natureza mais jovens (começam a esquiar com cerca de 3 anos de idade) e estão muito mais habituados à vida ao ar livre, assim como acontece na Europa e EUA. No Brasil simplesmente fazer caminhadas e acampar ainda causa um certo choque e extrai exclamações de boa parte da população.

Com uma população total de 32 milhões de habitantes, que é inferior à população do Estado de São Paulo somente (acima dos 40 milhões), o Canadá conta com um dos principais festivais de montanha do mundo (Banff Film Festival), uma renomada Associação de guias de montanha (ACMG) – filiada à UIAGM (União Internacional das Associações de Guia de Montanha) e que possui com um elaborado sistema de treinamento e certificação de guias e instrutores - uma associação certificadora de instrutores de esqui (CSIA), o mais avançado treinamento para estudo de prevenção e análise de avalanches do mundo (CAA) e uma renomada instituição para treinamento de atendimento de primeiros socorros voltada exclusivamente para atividades outdoor (Wilderness Medicine) entre outras, além de ser capaz de treinar guias através de cursos oferecidos pelas associações, escolas e universidades e gerar oferta de emprego para guias e instrutores especializados em atividades de aventura (caique oceânico, caiaque de corredeira, caminhadas, esqui entre outras atividades) tanto no verão como no inverno.

Aqui no Canadá, em tratando-se do turismo de aventura, nos referimos à ‘Indústria do Turismo de Aventura’. Indústria porque ela não envolve somente as operadoras mas envolve também empresas que oferecem outros produtos e serviços (hospedagem, alimentação, transporte, etc) paralelamente. A Província (equivalente ao Estado no Brasil) de British Columbia por exemplo é benficiada por suas belezas naturais e utiliza-se do turismo com uma das principais fontes de renda da Província, sendo o turismo de aventura responsável por atrair grande parte dos turistas para a região. A indústria do turismo de aventura no Canadá esta tão desenvolvida que seguradoras podem oferecer seguro contra acidentes e processo judicial para operadoras, clientes e praticantes de esportes de aventura. Além de tudo, oferecem seguro em viagens particulares e expedições para praticar esportes de aventura a preços extremamente acessíveis, chegando a $1.15 dólar canadense por dia com cobertura de dois milhões de dólares canadenses contra acidentes com hospitalização e tratamento de emergência para residentes Canadenses em viagem no Canadá e no exterior. O uso de waivers (termo de responsabilidade) é altamente difundido e eficaz para proteger as operadoras e prestadoras de serviço contra um processo judicial em caso de acidentes contanto que este seja aplicado da maneira correta e a empresa opere de acordo com as regulamentações da indústria.

Enquanto isso no Brasil ainda estamos batalhando (e bastante) para conseguir nos organizarmos e estabelecer os parâmetros para certificação de cursos e instrutores e a regulamentação para operadoras. O montanhismo e esportes de aventura são relativamente jovens e ainda estamos engatinhando neste processo de desenvolvimento, mas acredito que temos uma grande vantagem: o fato de que em países como o Canadá, Austrália e Nova Zelândia, que possuem centenas de anos de história e experiência com atividades outdoor, a indústria do turismo de aventura é extremamente desenvolvida, bem como os modelos e normas para regulamentação de guias, instrutores e operadoras e podemos nos inspirar em tais modelos e aprender com eles, acelerando o nosso processo de desenvolvimento. Evidentemente cada país possui as suas particularidades e Leis, e as normas devem ser modificadas de acordo, mas a vantagem é que podemos aprender com os erros e acertos alheios e estabeler normas modernas, que já foram testadas pela indústria e aperfeiçoadas com a experiência.

A única preocupação que resta é o envolvimento do Governo no processo de criação de normas para os esportes de aventura. As normas e regulamentações deveriam ser criadas pelas associações e profissionais da área, não impostas através de Leis que são criadas por indivíduos que geralmente não entendem as atividades, não fazem sentido e não protegem os clientes ou empresas contra negligência e treinamento inadequado e que acabam dificultando ou impossibilitando alterações que possam ser necessárias no futuro. As normas e regulamentações devem ser capazes de proteger os guias/instrutores, a empresa e os clientes em caso de acidentes e devem exigir alto padrão de treinamento e atendimento em caso de acidentes ou emergências. Somente a própria indústria, a associação em conjunto com os operadores será capaz de mensurar e determinar quais os elementos necessários para que tais características sejam atendidas. É necessário conhecer as atividandes a fundo e saber as possíveis causas de acidentes para determinar que medidas serão necessárias para preveni-los. Adicionalmente, o elemento da flexibilidade é essencial, pois as normas devem poder ser alteradas conforme são colocadas à prova. Um bom exemplo é o que aconteceu no Canadá alguns anos atrás. A Província de British Columbia possuía o mais elaborado conjunto de regulamentações para operadores de rafting do mundo, modelo para outros países até a ocorrência de um grave acidente com morte por uma empresa que não estava de acordo com as regulamentações. Após a investigação do acidente o Governo interviu e institui um conjunto de normas retrógrado que hoje é efetivo e Lei, mas muito mais antiquado que o sistema anterior.

Neste momento temos no Brasil o potencial de desenvolver as atividades de turismo de aventura e impulsionar a economia do país através do turismo, protegendo e valorizando nossas áreas naturais. Também temos o potencial de criar um moderno sistema de normas e regulamentações para as atividades de aventura utilizando sistemas já implementados e testados como modelo pelo mundo. Resta saber se saberemos utilizar as ferramentas que temos em nossas mãos sabiamente e finalmente minimizar o número de acidentes e fatalidades que têm acontecido nos últimos anos, ao mesmo tempo possibilitando o crescimento da indústria do turismo de aventura no Brasil e que mais pessoas tenham acesso às nossas áreas naturais com segurança. De olho no futuro nós também poderemos atingir um elevado nível de desenvolvimento e sobreviver do turismo de aventura.

Por Samanta Chu
______ Designer, montanhista, escaladora e remadora.
______ Bacharel em Desenho Industrial pela Universidade Mackenzie e Diploma de ______ ______ Turismo de Aventura pela Thompson Rivers University (Canadá).
______ Guia profissional, no momento trabalhando como guia de caiaque oceânico em ______ ______ Vancouver Island, Canadá.
______ www.chudesigns.net
______ sam@chudesigns.net


Atenção: O site Brasil Vertical adverte que as atividades de Montanhismo e Escalada são inerentemente perigosas, oferecem risco e que devem ser praticadas somente por indivíduos com conhecimento técnico e equipamento adequado e que assumam pessoalmente todas as responsabilidades.
As informações aqui oferecidas não substituem a formação por meio de cursos técnicos ou contratação de guias. Verifique sempre todo o seu equipamento, antes e depois da atividade.
Tenha boas informações sobre o local aonde pretende ir. Escalando, use sempre capacete!


___ Entrevista — Um relato de Samanta Chu